Gosto sempre de recordar os meus tempos de criança. Bons tempos aqueles, aliás, em que a maior preocupação da gente era a prova de matemática do dia seguinte. Hoje em dia, quem dera tivéssemos, todos nós, somente as equações a nos tirar o sono.

Mas como nos dias em que fui menino ainda se podia jogar bola na rua, a maior parte dos causos que conto tem como mote principal justamente o futebol, sempre minha paixão mas jamais o meu dom.

Assim é que, desta vez, vou falar sobre um gol que eu não fiz. Ainda que muitos outros não tenha feito por absoluta falta de qualidade técnica, este, em especial, não marquei por que não quis. Isso mesmo: perdi um gol de propósito, na mais absoluta prova do péssimo profissional que um dia, por sorte, Ademir da Guia, o nosso Divino, me impediria de ser. Mas esta é uma outra história, que prometo também contar neste espaço.

O fato é que no bairro do Pari, onde nasci e cresci, havia dois timinhos: um era o Vautier, nome da principal avenida, e o outro era o Lobinho. O primeiro jogava com a tradicional camisa listrada em azul, branco e preto, idêntica Ã* do Grêmio/RS; já o segundo, nosso único e por isso mesmo maior rival, usava lindas e cintilantes camisas verdes. Daí que, na nossa imaginação infantil, um era o time gaúcho e o outro, o Palmeiras.

Acontece que, por morar justamente na avenida que batizava o time, fazia parte do Vautier. Que fique bem claro, contudo, que fazer parte, no meu caso, se resumia a ficar pendurado em alguma árvore ou portão, assistindo aos outros meninos jogarem. Nos dias de clássicos, ficava rezando para que a margem de gols fosse amplamente favorável Ã* minha equipe, pois só assim os garotos me deixavam jogar um pouquinho, bem no fim do jogo, que só terminava quando a mãe de um, aos berros, invadia a calçada onde jogávamos e retirava o dito cujo aos puxões de orelhas.

Certa vez, quando o Lobinho veio jogar na calçada do Vautier, venci a timidez e pedi para o melhor jogador e por isso mesmo também capitão do meu time:

_Me deixa jogar hoje?

_ Sem chance, respondeu, seco.

_ Por quê?, perguntei, como se a resposta já não soubesse.

_ Porque hoje vale taça e você só serve pra dar abraço.

Fiquei louco da vida. No íntimo, sabia que o menino falava a verdade, mas quando se tem 8 anos quem é que dá a mínima pro íntimo? Mesmo contrariado, lá fui eu para a árvore. De tanta raiva, comecei a torcer, silenciosamente, para o Lobinho. Se eu não servia para o Vautier, então que o Vautier se danasse. Por isso, a cada ataque do Lobinho, rezava para a bola entrar no gol que o Bola, nosso goleiro, defendia com qualidade extremamente discutível.

No fim do jogo, quando o placar marcado a giz no asfalto apontava um apertado 8 a 7 para o Lobinho e a noite teimava em tomar o lugar da tarde, um de meus colegas de repente soltou um grito terrível:
_ Aaaaaiiiiii!!!!

Corremos todos. O que foi? Machucou? Tá doendo? Vai sair sangue? Será que vai ter de engessar? As perguntas se sucediam ao atônito menino, que disparou:

_ Quebrei meu pé!

Que nada: dera apenas com o dedão no chão, já que tinha o péssimo hábito de chutar de olhos fechados. Na hora, confundira a bola de capotão com o asfalto. Chato, né, mas nada que uma boa salmoura não curasse totalmente poucos dias depois.

O fato é que alguém teria de entrar em seu lugar, e o capitão do meu time, ao dar uma rápida olhadela nas árvores e nos portões, só viu um "vautierense" por perto: adivinha quem.

Fui escalado no time e orientado de forma clara:

_ Pelo amor de Deus: fica lá na frente, cerca o cara que sair com a bola mas não me venha pra defesa, que aqui atrás você só complica. Não precisa ajudar, basta não atrapalhar!, me disse o capitão.

Tá bom, pensei. Um comandado deve sempre seguir as ordens. Foi o que fiz.

Mas eis que a sorte, Ã*s vezes, bafeja sobre quem menos se espera. E, já no apagar das luzes (ou melhor, no acender das de mercúrio, recém-inauguradas no bairro), consegui sei lá eu como tirar a bola dos pés do adversário. Talvez acostumado com a facilidade que sempre encontrava ao me driblar, já que o tinha tantas vezes feito antes, ele foi displicente na jogada, por certo considerando-me uma estaca fincada no cimento.

Deu-se mal o metido: roubei-lhe a bola dos pés e, como num passe de mágica, vi-me diante do goleiro com a chance de escolher até o canto onde chutaria – se no esquerdo, tabelando com a parede, ou no direito, cuja trave era o poste de iluminação pública. Seria o gol do empate em 8 a 8, que ocasionaria mais uma partida e a chance de ainda ganhar o troféu. Ainda pude ouvir o grito do meu capitão, lá atrás, num misto de ordem e súplica:

_Chuta, meu, pelo amor de Deus!!!

Poderia, sim, ter feito o gol, mas no exato momento em que teria a chance de obter a glória, de ser o grande herói daquele empate, lembrei-me do que ele mesmo me dissera antes do jogo: "Você só serve pra dar abraço!".

Então pensei: "Ele que vá abraçar a mãe dele!". Mirei bem para o lado direito, entortei o pé que por si só já perecia ter nascido torto e mandei a bola para o meio da rua. Perdi um gol incrível, que nem mesmo um grosso como eu conseguiria perder. E como a bola demorou demais para voltar, acabou o jogo, com o Lobinho vencendo e ficando com a tacinha que, numa vaquinha, os dois times haviam comprado na lojinha de esportes que ficava bem em frente Ã* igreja.

Claro que saí correndo e busquei abrigo dentro de casa. Lá, nem o capitão e nem os outros moleques do time poderiam me bater. E, pela fresta da janela da sala, que dava para a rua, ainda pude ver, com o cantinho dos olhos, o time do Lobinho dando a volta olímpica no quarteirão "fora de casa" e com a taça na mão.

Se eu me arrependi depois? Claro que sim, principalmente porque nunca mais nem na árvore ou no portão pude ficar - saí do time, definitivamente. Mas até que o remorso tomasse o lugar do doce sabor da vingança, aproveitei ao máximo aquela derrota.

E, cá entre nós, havia outro fator a me confortar: como disse acima, o time do Lobinho vestia uma camisa cuja cor sempre me fora muito especial...